Era mais um daqueles sábados monótonos, chuvosos e frios. Típicos daquele lugar. Na janela, um mundo cinza, com pinceladas verdes das copas das árvores e, eventualmente, algum estilhaço de céu azul. Naquele dia o vento sumira. Ele, que costumava cantar alto, estava calado. Nem nas folhas tocava. A janela do meu apartamento mais parecia um quadro tecido a tinta óleo. Muito bem pintado, diga-se por dizer. Uma pena que, naquele dia, parecia que na aquarela havia somente branco e preto. “Tempo instável com pancadas de chuva ao final do dia” dizia a previsão do tempo. Mas não havia pancadas. Não havia gotas caindo no piso da varanda descoberta. No interior, nem o tic tac dos relógios. Os meus eram todos digitais. Tudo que eu via era um mundo aparentemente congelado. O sol camuflado em nuvens sequer permitia que eu notasse o tempo passar. Noite e dia se confundiam. A única noção de tempo que eu poderia ter era do meu próprio corpo envelhecendo. Fiquei alguns instantes olhando fixamente as minhas mãos, para ver se notava alguma ruga ou coisa do tipo. Nada. Tão congelada quanto o mundo e o tempo, estava eu. Sentada num sofá daqueles bem fora de moda, com estampa de jornal. Também cinza, aliás. Pelo menos combinava com o exterior do apartamento. Meu desgosto em existir (naquele momento, que fique claro) não permitia que eu visse, ouvisse ou sentisse nada além do que já estava naturalmente contido em mim. Aquelas coisas como pensamentos, sonhos e lembranças. Todas em branco e preto, também.
De repente, parei de ouvir a mim mesma. Não escutei passos. O telefone não tocou. O porteiro não ligou no interfone. A ambulância atônita não passou pela avenida ao lado. O cachorro do vizinho não latiu. Eu, então, notava isso tudo sutilmente. Sabia que ele estava vindo. Menos passos, menos vento. Ele estava chegando. As vozes caladas, os pássaros mudos. Bem, eu sabia que agora ele poderia chegar a qualquer momento. Não tinha como fugir. Não é algo do que se possa fugir. Essas coisas invisíveis e metafísicas são sempre muito inteligentes.
Ele chegou. O tal Silêncio finalmente chegou.
- Olá, moça. Estava esperando por mim? – Disse ele, irônico.
- Como se isso fizesse diferença, você sempre tem o péssimo hábito de entrar sem bater – respondi, em mesmo tom.
- Você sabe que às vezes precisa passar um tempo comigo. Modéstia parte, estou certo de que sou o melhor conselheiro que alguém pode ter. Tem sorte, moça, de poder passar algum tempo comigo. Muitas pessoas vivem tão intensamente em sintonia com outros universos que acabam batendo a porta em minha cara quando tento fazer alguma visita eventual. Tolas... não percebem que deixando de passar um tempinho comigo de vez em quando, acabam por afastar-se de si mesmas.
- Pra alguém com o seu nome, até que o senhor fala bastante, não é mesmo, Silêncio?
- Ora essa! Esqueça essas formalidades! Não me chame de senhor. Assim é que se chamam os mais velhos. Sabes que não sou velho. Muito menos novo. Estou além e aquém do tempo. Alguns dizem que sou atemporal, mas, sinceramente, não gosto dessa palavra. Remete-me a tempestade. Coisa da minha cabeça, eu sei, mas todos têm suas esquisitisses. Só porque sou pura abstração não tenho direito de ter as minhas?
- Tem, é claro que tem...
- Foi uma pergunta retórica, minha querida. Bem, mas continuando o que estava dizendo, eu existo muito antes de existirem as coisas que existem, compreende?
- Acho que o senh... digo, que você precisa me explicar melhor este pensamento...
- Veja bem, minha cara, sabe aquela tal explosão que vocês costumam dizer que deu origem ao universo? O Big Bang?
- Sei, claro que sei. Embora as ciências exatas nunca tenham sido meu forte, é algo que qualquer ser humano com um pingo de conhecimento deve saber.
- Pois então. Pense um pouco. Antes daquela bola cósmica explodir, antes de que qualquer estrela nascesse ou planetas girassem, o que havia? O que existia antes de tudo existir?
- Havia você, Silêncio.
Por um instante, uma sutil rajada de vento fez com que os sininhos decorativos da varanda se agitassem, produzindo um som espontâneo e harmonioso. Neste breve momento, enquanto a música desajeitada dos sinos ecoava, o Silêncio se calou. No entanto, bastou que o som cessasse para que ele voltasse rapidamente. Aproveitei para procurar uma posição mais confortável no sofá. Sabia que aquela conversa seria longa.
- Odeio ser interrompido! – esbravejou.
- Achei que já estava acostumado. Afinal, o mundo é feito de sons e distração. Você é a raridade por aqui. – expliquei, tentando acalmá-lo.
- Não é esta a questão. Estou ciente da presença constante dos sons. Mas é bom deixar claro que minha presença depende de você, muito mais do que o universo externo aos seus olhos. O que me afastou não foi a música que veio dos sinos, mas sim a quebra da sintonia que havia sido estabelecida dentro de você mesma, com seus pensamentos. Portanto, trate de se concentrar em mim, menina.
- Tudo bem, desculpe-me.
- Está certo. Mas agora chega de falar de mim. Vamos ao que interessa: você.
- Não sou boa em falar sobre mim mesma, não.
- Ora essa! Sabe que só estou aqui porque você desejou. Precisava deste tempo comigo. Aproveite enquanto é tempo!
- Ok, ok. Você tem razão... Eu precisava de um tempinho em sua companhia, de fato. É que sabe, Silêncio, esse monte de palavras que dizemos e ouvimos todos os dias têm me deixado confusa, aflita. Já não sei mais escolher as palavras certas, no tom exato, que não façam machucar, nem confundir, muito menos afastar quem eu amo de mim.
- Refere-se a alguma situação em especial?
- Não, não. É algo que sinto o tempo todo. Tantas pessoas, tantas conversas, frases, ideias e por trás de tudo aquilo um mundo vazio. A solidão em meio à multidão. Não sei escolher as coisas certas a serem ditas àquelas que realmente fazem a diferença pra mim. Já perdi muitas pessoas por conta disso. – desabafei.
- Pois então me use, querida. Tens toda a minha permissão! Quando lhe faltarem as palavras ou quando não souberes como usá-las, simplesmente se cale. Utilize-se mais do olhar, mais do carinho, da comunhão calada das consciências, da sintonia. Palavras são só mais uma das invenções humanas. O que vale mesmo é o que se vive em silêncio, modéstia parte. Estou contido na simplicidade de cada momento que anula a necessidade de palavras.
- Uau, falou bonito, hein! Só acho que tem uma coisinha que você deve sentir inveja porque, às vezes, causa o mesmo efeito que você, mesmo em sua complexidade de sons: a música.
- Esse é assunto pra outro dia. Além do mais, não gosto muito dessa tal aí, não. Melhor deixar pra lá... – disse o Silêncio, embaraçado.
- Tudo bem, desculpe-me.
- Não há pelo que se desculpar, acho que ambos somos necessários. Até porque, veja bem, se voc...
E antes que ele pudesse terminar, o telefone tocou. Era apenas telemarketing. Ao mesmo tempo, o cachorro do apartamento de cima começou a latir freneticamente. Sem contar que o porteiro interfonou para avisar que a Super Interessante do mês havia chegado. Meu celular despertou, também, para que eu lembrasse de devolver os DVDs que emprestei do meu amigo (e que já estavam comigo há dois meses).
Quando voltei, o Silêncio havia sumido. Foi embora sem nem sequer se despedir. Mal educado! Tão sábio e tão sem educação. Da próxima vez que ele vier vou lhe ensinar umas lições de boas maneiras, isso sim.
Fiquei muda....em silêncio...simplesmente espetacular, Adorei, bjs.
ResponderExcluirAngela Carstens